quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Fábula da vida real



Se não fazem parte de uma trilogia, “Cidade de Deus”, “O jardineiro fiel” e “Ensaio sobre a cegueira” têm muito em comum. Todos tratam do holocausto humano. Da absoluta degradação moral e física causada por uma situação social extrema; seja uma África desamparada, uma comunidade dominada pelo tráfico ou uma cidade em que as pessoas perdem a visão. Se nos dois primeiros casos as histórias eram baseadas em fatos reais, em ‘Cegueira’ a narrativa funciona como uma alegoria para os primeiros enredos. A metáfora da cegueira, ou da invisibilidade social, justifica as atrocidades descritas tanto em ‘Cidade de Deus’ quanto em ‘O Jardineiro Fiel’. A incômoda temática é a mesma.

Nesses três filmes do Meirelles (não vi seus outros dois trabalhos, Domésticas e Menino Maluquinho 2) a tese é a de que, sob condições adversas, o homem se transforma em sua principal ameaça, mais do que zumbis, extra-terrestres ou plantas que liberam toxinas - é verdade que em ‘O jardineiro fiel’ ricos laboratórios farmacêuticos também são grandes vilões. O conflito social é mais importante e mais presente do que os personagens em si. Geralmente um personagem – o um que representa o todo – carrega a narrativa sob o próprio ponto de vista, moldando e remodelando os conceitos de ética e moral a partir das situações extremadas a que é submetido. Em ‘Ensaio sobre a cegueira’, Juliane Moore faz a mulher do médico. Apesar de conduzir a história, ela não tem nome, é o humano universal. No filme, ela é a única a enxergar em um sanatório para onde são jogados todos aqueles que inexplicavelmente perderam a visão. O ‘super-poder’ lhe confere também o fardo de tentar estabelecer alguma ordem e alguma justiça em um ambiente cada vez mais hostil e caótico. Ela mata, vinga a traição cometida pelo marido, se desespera e perdoa. Em alguns momentos age como um animal protegendo a comida e o abrigo do seu pequeno grupo, em outros age com a sensibilidade e carinho típicos da humanidade em seus bons momentos.

A proposta do Saramago casa perfeitamente com a linha adotada pelo cinema do Fernando Meirelles. É uma profunda e aterradora crítica social, mas sem saídas fáceis. A culpa não é do Estado, nem da Polícia, nem da Família, nem da Igreja, nem do Tráfico, nem dos Maconheiros playboys, nem da Mídia. Os dilemas levantados são difíceis de resolver. Como a história é universal, ela tem também um pouco de nós, do nosso egoísmo, da nossa ganância, da nossa cegueira. Por isso o filme é indigesto. É uma fábula da vida real.

O tom quase documental dos seus outros dois membros da ‘trilogia’ está um pouco ausente nesse trabalho, mas não o realismo. Os computadores têm fios aparentes e as mesas de madeira encerada têm lascas de compensado faltando nas quinas. As faixas de pedestre são gastas e os consultórios médicos têm banquinhos de madeira nas salas de espera. A trilha do fundador do Uakti, Marco Antônio Guimarães, é mais perturbadora do que envolvente, mais incômoda do que aconchegante. A fotografia do César Charlone vai do café ao leite, como na cena de sexo de Alice Braga com o Mark Rufallo. A estética de Fernando Meirelles não é da harmonia, mas do caos. Em vez do tom solene e de espaços amplos e bem dispostos, barulho, paredes sujas, claustrofobia... São Paulo.




Pedro Grossi

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom,gostei do sentido mais amplo que você deu, buscando a trajetória do Meirelles e sua temática social. Acho que esse clima de desconforto do filme instiga as pessoas a o procurarem...

Filipe Abreu disse...

Boa Pete... Concordo com vc. Achei brilhante o Fernando Meirelles nesse filme. Brilhante como cineasta. A forma como ele domina a câmera, como trabalha em harmonia com o Charlone. Perfeito. Alguns enquadramentos são magníficos, pensados para casar num ritmo exato com o assunto do filme.

Pra mim, o FM tá bem à frente dos outros diretores brasileiros. A "trilogia" que vc citou é simplesmente boa demais.