sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Vida de técnico

Em tempos de secura criativa, apelo para produções alheias. Tento, ao menos, ser seletivo nas citações.

Vida de técnico - Arthur Dapieve

O Brasil é o país do futebol. E de clichês como esse. Em torno dos gramados, então, os lugares-comuns pululam mais que cambistas, flanelinhas e ambulantes. Às vezes, o país tenta inovar, ou descobrindo um esquema de manipulação de resultados envolvendo um único árbitro ou considerando, como ora considera um desembargador, que não há estelionato no caso do solitário árbitro, manipulador confesso de resultados. É como se, num Brasil onde se rouba até merenda escolar, o futebol fosse a única coisa imaculada.

No mais das vezes, porém, impera o clichê. É aquela frase feita que, conquanto guarde alguma relação com a realidade, esvazia-se de sentido ao ser usada com frequência e automatismo, sem atenção aos casos particulares. O clichê acaba virando o nonsense elevado à condição de regra pétrea. No âmbito do futebol, um dos meus "favoritos" retorna a cada demissão de técnico. Todas elas, independentemente de suas peculiaridades, são sempre lamentadas como injustas em termos que às vezes não fazem o menor sentido.

Releia-se, por exemplo, o que o lateral direito Alessandro, do Botafogo, disse na segunda-feira a respeito da demissão do técnico Ney Franco. "É normal isso aqui no Brasi, treinador que não consegue resultado é demitido", lastimou o atleta. Não é necessário, entretanto, ser jogador de futebol para incorrer nessa batatada. Muitos jornalistas esportivos também o fazem, naturalmente em locuções mais elaboradas. O argumento subjacente é que é preciso dar tempo para que um treinador mostre a frente de uma equipe.

Eis o substrato de verdade no clichê. Não é possível cobrar resultado de quem mal assumiu o posto, ninguém discute. Todavia, na hora em que se extrapola o bom senso e insinua-se que nenhum técnico teve tempo bastante, aí sim se recai no lugar comum. Afinal, o que é o esporte, a não ser resultado? "O importante é competir"? Rá. Sei. Uma coisa é defenestrar um profissional após alguns meses e um punhado de partidas, outra é convidá-lo a se retirar após mais de ano. Esse era o caso de Ney Franco, cuja demissão foi largamente pranteada na mídia, talvez por ele ser educado, gente boa, sangue bom.

Só que o torcedor não quer seu técnico para papear no boteco, não quer chamá-lo para ser padrinho de batizado da filha. Quer é que o cara bote seu time na linha e, se não conseguir títulos, que ao menos não o envergonhe. Em 13 meses no meu Botafogo, Ney Franco obteve 34 vitórias, 18 empates e 23 derrotas. Ou seja, consguiu 120 de 225 pontos disputados. Muito pouco. Se se levar emconta que a maior parte das vitórias ocorreu no fraquíssimo Campeonato Carioca, a perspectiva piora. E se se lembrar que o time entregou essa taça para o Flamengo quando tinha nas mãos faca, queijo e guardanapo, então...

Ah, o time do Botafogo é mediano? É, de fato. Não tem esquadrões poderosos como Goiás, Atlético-MG, Barueri e Avaí, todos ora à frente até do Flamengo no Brasileirão. Mas reza o clichê que é lamentável um técnico ser cobrado por resultados... Ora, qual profissão, salvo a de presidente do Maranhão e alguns outros servidores públicos, não é cobrada por resultados? Alguém imagina a caixa do supermercado se queixando na hora do bilhete azul: "Eu errei muito troco, irritei a freguesia, e, no fim do dia, as contas não batiam, mas é uma pena essa tradição do varejo brasileiro de cobrar as caixa s por resultado."? Os resultados justificam, sim, a demissão de Ney Franco - que, aliás, acertou com o Coritiba ainda antes de o Botafogo anunciar o substituto, Estevam Soares - assim como justificam a permanência de Dunga na seleção. Mineiro e gaúcho são antípodas. Enquanto Ney Franco fala manso, canta Beatles e até se arrisca ao violão, Dunga rosna, acha que tudo que você precisa é joelhaço e deve achar rock coisa de veado. Enfim, o tipo de figura que a mídia adora detestar. E detestamos todos, eu inclusive, quando ele se materializou sem experiência nenhuma, como um pau-mandado de Ricardo Teixeira, presidente da CBF.

Dunga, contudo, foi conseguindo os resultados. Nos amistosos, na Copa América, na das Confederações, nas eliminatórias para o Mundial. Tanto que agora só alguma catástrofe o tirará do comando no ano que vem, na África do Sul. Ah, ele tem sorte? Tem, de fato. Quanto mais ele trabalha, mais sorte tem. Dunga foi acertando o time, na escalação e na tática, livrando-se de muitos boitatás (alguns, não todos, criados por ele mesmo).

O técnico da seleção ainda tem lá suas manias inexplicáveis, tipo Josué e Elano. Todo técnico de futebol tem. Ney Franco, por exemplo, tinha Fahel, Emerson, Lucas Silva. Contando com melhor material humano, Dunga controlou tais impulsos autodestrutivos. Josué esquenta o banco há tempos, e Elano cedeu lugar a Ramires, superior. Dunga fez mais: ao não chamá-lo para o amistoso contra a gloriosa Estônia, sinalizou que Alexandre Pato talvez seja (como eu acho que é) supervalorizado. Veremos. Dentro de lógica similar, o técnico pôs e esqueceu na geladeira o ex-atleta Ronaldinho Gaúcho.

Dunga é perfeito? Isso não existe. O que existe é técnico cuja equipe vibra e ganha jogo, técnico cuja equipe é abúlica e não ganha cara ou coroa. Alguns conjuntos não chegam nem a ser incompetentes, são inapetentes. Por razões inteiramente diversas, o Botafogo de Ney Franco, sem estrelas, e a seleção pré-Dunga, galáctica, estavam assim.


Pedro Grossi