Estou careca de saber que o futebol é um dos principais trampolins sociais do Brasil. Sei também que Romário veio de família pobre e ganhou a vida graças ao talento esportivo. Mas essa história foi tantas vezes repetida que os fatos perderam o peso. Dos nossos, como diz o outro, 'palacetes acarpetados' é um pouco difícil dimensionar o que é nascer na periferia carioca em um criadouro de criminosos. Pra quem nasceu num lugar desses já é louvável o fato de conseguir chegar ao fim do dia e perceber que nenhum membro da família morreu de fome ou em um tiroteio com a polícia. Além de talento, Romário teve sorte. Quantos outros morreram antes de conseguir mostrar em uma peneira o dom para o futebol?
No supracitado documentário, aparecem os personagens que fizeram a história do Romário ser diferente. A tia que dava dinheiro pra ele pagar o transpote até São Januário, o treinador de várzea que sabia do talento que tinha em mãos, as testemunhas de lances que mais tarde encantariam milhões de torcedores pelo mundo e o pai que depositava em Romário a chance de sair da pobreza extrem em que viviam. Nem os clichês típicos de uma produção global, como a narraçao de Sérgio Chapelin e as imagens em contraluz de jogadores fazendo embaixadas ao por do sol, diminuíram a força do programa. Nesse caso, o conteúdo foi mais forte do que a forma. Os depoimentos do Romário demonstraram o ser humano por trás da marra e da máscara, que talvez não sejam nada mais do que defesas de quem se criou em ninhos de cobras.
Nos jogos em que o milésimo era esperado, uma câmera silenciosa acompanhava os passos do jogador. Sem Sérgio Chapelin e sem trilhas do Marcus Vianna. Apenas Romário e seu destino. E nós, como privilegiadas testemunhas. Quando finalmente saiu o gol, Romário recebeu aqueles a quem deve todo o sucesso. Nenhum atleta, nenhum jornalista, nenhum cartola. Estavam lá a esposa, as filhas (uma delas com síndrome de Down) e a tia que emprestava dinheiro pra ele ir treinar.
PS.: A matéria feita pelo Régis Resing para o Jornal Nacional sobre o gol 1000 foi excepcional. É estimulante saber que o jornalismo ainda tem salvação